quinta-feira, 19 de maio de 2011

não tem você, vai pão doce.

"(...) isso tudo só foi começar muito depois

depois de um tempo em que eu era

tão completamente ingênua

tão sem força de vontade

que as doces delicadezas

de qualquer guloseima

lânguidas me seduziam

e minha língua sofria

de incontrolável fascínio

por cremes dourados

e frutas cristalizadas

feito rubis incrustadas

nas crostas crocantes dos pães..."


(Adriana Calcanhoto)

domingo, 8 de maio de 2011

"bar ruim é lindo, bicho."

"Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso frequento bares meio ruins. Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, nos julgamos a vanguarda de mais de cento e cinquenta anos (deve ter alguma coisa errada com uma vanguarda de mais de cento e cinquenta anos, mas tudo bem). No bar uim que ando frequentando ultimamente o proletariado atende por Betão - é o graçom, que cumprimento com um tapinha nas costas, acreditando resolver aí quinhentos anos de história. Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar "amigos' do graçom, com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para falarmos de literatura.
- Ô Betão, traz mais uma prá gente - eu digo, com os cotovelos apoiados na mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda que é o Brasil. Nós, meio intelectuais meio de esquerda adoramos fazer parte dessa coisa linda que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm mais a cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gâteau e não tem frango à passarinho ou carne de sol com macaxeira, que são os pratos tradicionais da nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectiuais meio de esquerda, quando convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit gâteau do que frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.
Nós, meio intelectuais meio de esquerda, gostamos do Brasil, mas muito bem diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar ruim. Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo americano e, se tiver porção de carne de sol uma lágrima imediatamente desponta em nossos olhos, meio de canto, meio escondida. Quando um de nós, meio intelectuais, meio de esquerda descobre um nove bar ruim que nenhum outro meio intelectualmeio de esquerda frequenta, não nos contemos: ligamos prá turma inteira de meio intelectuais meio de esquerda e decretamos que aquele lá é o nosso novo bar ruim. O problema é que aos pouco o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo frequentado por vários meio intelectuais meio de esquerda e universitárias mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha como ponto frequentado por artistas, cineastas e universitários e, um belo dia, a gente chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e, principalmente universitárias mais ou menos gostosas. Aí a gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais meio de esquerda adoramos dizer que frequentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de ela tocar na MTV. Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres que chegam depois, de chevette e chinelo Rider. Esse pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico. E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.
Os donos dos bares ruins que a gente frequenta se dividem em dois tipos: os que entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem percebem qual é a nossa, mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no cardápio e aumentam cinquenta por cento o preço de tudo (eles sacam que nós, meio intelectuais meio de esquerda somos meio bem de vida e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato). Os donos que não entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando reggae. Aí eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão Brasil, tão raíz.
Não pense que é fácil ser meio intelectual meio de esquerda em nosso país. A cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente gosta, os pobres estão de todos de chinelo Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta para encher os nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit gâteau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio intelectuais meio de esquerda, que, como eu, por questões ideológicas, preferem frango à passarinho e carne de sol com macaxeira (que é a mesma coisa que mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio intelectuais meio de esquerda achamos que o Nordeste é muito mais autêntico que o Sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é bem mais assim Câmara Cascudo, saca?)
- Ô Betão, vê uma cachaça aqui prá mim. De Salinas quais que tem?"

Antonio Prata.
   
   

sexta-feira, 6 de maio de 2011

antonio prata tem aparecido prá mim. vou colocá-lo aqui, hoje. junto com o botero.

por hora, usemos de consolo:


"Há em vosso guloso descontrole uma nota de revolta contra um mundo que encolhe

A segunda metade do século 20 assistiu à fragmentação das lutas e ao alargamento dos direitos: os negros se organizaram, as mulheres se organizaram, os judeus se organizaram, os gays se organizaram -até os ruivos, ouvi dizer, têm associações contra o preconceito cromocapilar que, parece, sofrem por aí.

Ótimo. Hoje, o sujeito pensa duas vezes antes de pintar suásticas ou enfiar um cone branco na cabeça, vestir os lençóis da cama e sair queimando cruzes pelas ruas. O problema é que sobrou uma única minoria, desarticulada e sem líderes, tomando na cabeça todos os cascudos que os últimos séculos dividiram entre os grupos supracitados: os gordos.

Na supremacia magra em que vivemos, já não se medem mais crânios para atestar a superioridade de ninguém, medem-se abdomens. O gordo, hoje, anda com os ombros curvados e os olhos baixos, como o judeu na Alemanha, em 1933, os negros, durante o Apartheid, uma mulher ou um gay num ônibus, tomado pela Gaviões da Fiel. Ainda não há campos de extermínio para obesos nem leis impedindo seu ir e vir, mas, pelas esquinas e mesas de bar, pelas praias e parques, podem-se ouvir os cochichos, cada vez menos discretos: "Deus do céu, será que ele não tem vergonha na cara?!", "Devia ser proibido uma mulher dessas usar biquíni!", "Se fosse um filho meu, internava num SPA!".

A ciência decretou, a moda difundiu, nossos superegos aceitaram: gordo é errado. Gordo é um descontrolado - e o autocontrole, hoje em dia, é tudo. Prega o espírito de nossa época que cada um de nós é uma empresinha a ser racionalmente administrada, e, no balancete diário de nossos corpos, o acúmulo de calorias é como um deficit econômico.
O gordo é um latifúndio improdutivo, máquina parada, ciclo vicioso. Ok: o brasileiro anda comendo mal. De fato, cada degrau que ascendemos na escala social é um buraquinho que alargamos no cinto. É bom que o governo faça campanhas por hábitos mais saudáveis, que as escolas ensinem educação alimentar, que meu querido Drauzio Varella nos lembre que nem só de papilas gustativas vive o homem; que, de coxinha em coxinha, nossas artérias vão acabar entupidas como a avenida Rebouças, às 6h da tarde.

O preconceito, contudo, essa campanha raivosa que trata a todos aqueles que não se encaixam no diet-zeitgeist como se fossem poltergeists, não nasce da preocupação com o outro. É o ressentimento que faz com que as bocas que se fecham tão estoicamente à comida abram-se vorazmente para maldizer os gordos.

Pois o gordo, meus caros, é o novo libertino. Quando o sexo era proibido, a prostituta era "feita pra apanhar", era "boa de cuspir". Hoje, com o sexo como totem e o torresmo como tabu, os que trocaram a penitência diária pelas abdominais e a hóstia pela granola, buscando a transcendência pela contenção, ficam indignados com a banha alheia. Por que é que eu preciso sofrer tantas privações, pensam eles, enquanto outros podem viajar na maionese?

Gordos do mundo, uni-vos! Ostentais as panças com orgulho. Há em vosso guloso descontrole uma nota de revolta contra um mundo que encolhe; um mundo que, cada vez mais, quer menos - em todos os sentidos."

Antonio Prata, na Folha de S. Paulo (compartilhado por Zeca).